Proseando
Jefferson Hora, eu e Juan Gomes.
Participei como elaborador duma prova e Júri da 15ª Gincana do Colégio Estadual Elisabeth Chaves Veloso, localizado no Cabula VI, no qual desenvolvo como arte-educador, desde o ano passado, um projeto de produção de textos em versos e prosas. Agradeço a direção e a todos os alunos e profissionais pela liberdade que tenho nas minhas ações educativas. Publicarei em outra oportunidade uma síntese dos resultados deste ano. Por agora fico com os dois mocinhos que realizaram a prova “Escrever um livreto de cordel e publica-lo no seu formato tradicional sobre o tema “O Quilombo do Cabula e o Negro Beiru”.
Eram quatro as equipes e além dos mocinhos, outras duas mocinhas também realizaram muito bem a prova. Mas a história desses dois é digna de nota. É que Jefferson Hora, o de cabelo Black na foto, perdeu seu texto um dia antes da apresentação. O cordel dele estava lindo, todos comentavam que tinha feito um verdadeiro poema, que era a poesia. De fato o menino é mesmo estiloso. Aí aquelas coisas que não acontecem mais. Juan Gomes, seu concorrente de boné na foto, também bom rimador, que me confessou não ter fixado muito bem o ritmo do cordel, vendo o colega desesperado o ajudou.
Daí saiu o cordel de maior pontuação entre as equipes. De Jefferson da Hora com a colaboração de Juan Gomes "O Quilombo do Cabula e o Negro Beiru", vamos a uma curta análise dele.
Feito em dezesseis estrofes septilhas, ou sete pés ou versos, com rimas em xaxabba (onde x não rima), versos em redondilha maior, um ou outro quebrado, começa a falar sobre a origem do bairro e na terceira estrofe diz:
“Da dança se veio o nome
É do negro, se especula
Veio do Congo e Angola
Povo que não se rotula
Deu origem ao povoado
Êta que povo arretado
Que formaram o Cabula”.
Prossegue com as origens do bairro. Palavras em quimbundo e iorubá precisas e naturalmente colocadas, as quais valorizam ainda mais o texto. Fala da posterior chegada dos povos nagôs e sobre a figura do Negro Beiru, onde faz tal reflexão:
“Pois pouca gente se importa
Com esse tempo de outrora
A luta não reconhece
O importante é só o agora
São feitos de incoerência
E não conhecem a essência
Nem do lugar onde Mora”.
Depois de fazer uma ponte histórica com o tempo atual, arrebata:
“Quem assim sofreu de verdade
Fica quase que excluído
Pergunta quem foi Zumbi
E só se ouve zumbido
Com Beiru da mesma forma
Só que sua essência volta
A cada verso aqui trazido”.
Com uma ótima pesquisa de base histórica. Um exemplar da consciência negra. Conclui seu lindo cordel numa perspectiva utópica que só a juventude tem:
“Se parar pra perceber
É um caso por segundo
Negro aqui tem história
Que fez o Brasil fecundo
Do Bonfim tem o Senhor
Do Brasil tem Salvador
Maior Quilombo do mundo”.
Depois da leitura de Jefferson, uma linda mocinha do sexto ano, afirma sua negritude, e com um violino (foi minha aluna e fiquei surpreso ao vê-la tocar) executa um tema em Baião. Aí não aguentei e fiquei emocionado.
Essa é nossa escola pública, onde projetos realizados com amor dão resultados apaixonantes. Agradeço aos dois mocinhos e a todas as equipes da Gincana por reiterar minha crença na humanidade.
− Arismem como é o golpe guga?
− É assim, tem o taco, tem a bola... rem... preto na verde, verde na azul, azul no amarelo... na marrom na lilás, rush ... segura o taco e... ram!
Lá ia mais um menino chorando com um cascudo de Arismem. Eu mesmo fui vítima do golpe guga. Os meninos mais velhos pegavam os mais novos. Vai lá e pergunte como é o golpe guga. Assim seguia a tradição.
Arismem era o louco mais famoso da cidade. Outros também com graça, mas ele de longe o mais inteligente.
− E aí Airis? – Um jovem o cumprimenta se fazendo de íntimo para impressionar amigos. Vai a tirada:
− Airis? Ih... já vi que você não saca nada de geografia. Airis? Aires é a capital da Argentina... o meu nome é Arismem!− E seguia a passo de malandro fazendo biquinho.
Respeitável figura da minha infância.
Vivia só. Só que um dia chegou uma mendiga louca por nome Margarida. Não era de lá, ninguém sabe ao certo de onde veio. Chegou e conquistou o coração do sábio Arismem. Margarida de tez branca, não afeita a banhos, cabelo castanho claro, andar deselegante e fala vulgar. Gostava de nos assustar levantando o vestido, mostrava seu lindo corpo a arreganhar as partes íntimas. Arismem outra coisa, tez escura e andar gingado. Um poliglota. Falava espanhol, inglês e francês; com o português perfeito que na loucura misturava às outras três línguas e ficávamos sem entender nada.
Diria que em cada tampa na sua panela os opostos se atraem... rem!
Víamos de mãos dadas a passear nas ruas do centro. Quando com ele, Margarida se comportava educada, apaixonada pelo apaixonante Arismem. Namoravam na Praça da Matriz, rolavam na grama, beijavam-se calorosamente. Faziam sexo à vista de todos. Ninguém ousava impedir o ato dos dois. Em maluco não se mexe. Que amor, que doçura. Fiquei feliz com o amor dos dois, motivo de riso pra hipocrisia da cidade. Dividiam a comida; não pediam dinheiro, se alguém desce era bem capaz de rascá-lo. Quando na adolescência assistir Hair lembrei dos dois.
Um amor da era de aquários.
Margarida, ah margarida, me fez uma. Tinha catorze anos e fiquei enamorado duma mocinha da escola. Sempre fui discreto e contido. Acompanhava-a até sua casa, conversávamos horas e chegou um dia que confessei. Disse-me que daria a resposta. Deu com um sorriso largo convidando pra irmos à praça. Chegamos. Quando vou beijá-la... vem a louca:
− ‘Cê quer é b... – O resto não precisa contar. A menina deu um grito e saiu correndo em pânico.
Arismem e Margarida caso de loucura de amor. Por vezes, como todo casal, discutiam. Margarida com seu dicionário de palavrões. Arismem com suas línguas pantomímicas. Uma graça.
Durou anos o amor dos dois. Mas de novo ele estava só. Não se via mais o lindo casal com os carinhos insanos, com seus beijos loucos. Era Arismem, seu cigarro, sentado na praça, andando na noite a resmungar.
Até que a morte nos separe.
Não lembro, creio que pai deu a notícia. Margarida tinha morrido atropelada na BR. Fiquei sentido pela perda.
Com o tempo nosso louco estava recuperado. Eu cresci, parti e retornei. Ganhei duma amiga um charuto Antonio y Cleopatra. Sentei no banco da praça, vem ele. Pede-me um cigarro, vou e dou o charuto. Tempo depois aparece fumando um cigarro...
− Cadê o charuto de fumo cubano que lhe dei?
− Eu troquei por um cigarro.
− Mas o charuto vale um pacote desse cigarro.
− Eu te pedi um cigarro, não um charuto.
Mestre de loucuras. Profundo entendedor de Diógenes a Aristóteles. Soube que faleceu faz uns anos de repente, dormindo, estava medicado e até havia arranjado um serviço.
Saudoso. É merecedor mais do que essas simples linhas.
Arismem mora na memória.
Na loucura amou, viveu, ensinou e morreu.
Há uns tempos participei dum recital na Biblioteca Comunitária do Cabula, situada na UNEB, Campus Salvador. Seria mais um recital qualquer. Poetas bêbados declamando concentrados poemas de ontem e dispersos sentimentos de hoje. O melhor dessas atividades lúdico-literárias não são os poetas e declamadores profissionais, mas sim os adolescentes e jovens ainda em formação. Pensei em não recitar, só ouvir o que de novidade poderia encontrar num ou noutro verso, até que chamaram meu nome... dei a recitar um poema que fiz pr'uma antiga paixão quando distante:
“Coração anda comigo
Saudade passa no verso
Que desde a infância abrigo
Coração anda comigo
Assim não corro perigo
Nem me afogo submerso
Coração anda comigo
Saudade passa no verso.
Os extremos nos separam
São outras ondas aí
Em outras pedras deparam
É que extremos nos separam
Morena as trovas não param
Nem vou deixar de sorrir
Os extremos nos separam
São outras ondas aí.”
Curvo-me ao público, aplausos, e aquilo mesmo. Mas, percebo uma moça nuns sussurros poéticos. Andava de lá pra cá tentando lembrar um trecho desse poema.
Tinha brilho no olhar. Brilho no olhar que era o brilho no olhar.
Duas estrelas na face negra linda da moça, as únicas por trás do céu nublado daquela noite. Digo, não era um brilho comum, recordo o ter visto numa outra jovem que marcou o meu passado. Brilho de quem vê algo de novo embaixo do sol, que nos faz acreditar na humanidade, que renova o homem.
“Rosto da noite duas estrelas cintilam”, anotei nos rascunhos que sempre trago comigo.
Aproximei. Estava a conversar com outro jovem:
- É machista! Você é machista... machista!
O moço retrucava paciente:
- E você ingênua...
Decerto a moça era ingênua, mas ingênua do que o rapaz. Também certo, era mais inteligente do que ele. Ela dizia, doutra maneira, que fazer poema pra mulheres, aquelas cantadas em verso, era um pretexto pra conquista, mais uma safadeza masculina. O poeta que faz versos com essa intenção é machista. Talvez se tratasse do dilema Nerudiano, "poeta do povo ou das mulheres"?
- É machista!
- Ingênua!
O moço disse que se fosse assim não existiria poesia lírica. A jovem que um poema verdadeiro para uma mulher não deixa de ser político. Que prefere um poeta político, que consegue colocar em palavras sentimentos nobres, intenções nobres...
Acompanhei mais de perto a discussão. Girou e girou e ficou nisso mesmo. Machista! Ingênua! Ingênua! Machista!
Fizeram uma roda e pediram pr'eu recitar. Era uma dezena de moços e moças leitores de poemas, muitos arriscavam pela primeira vez a luta com e contra as palavras. Nós que aprendemos com os velhos, devemos dar toda atenção aos mais novos. Com eles sabemos até onde essa sociedade afeta a sensibilidade.
Posei pra foto. Ela e mais duas pediram um "selfie"(acho que é assim que escreve) comigo. Não bebi o ponche e antes de despedir de todos disse à moça pra não perder o brilho no olhar. Ela percebendo que eu estava de partida, me fez elogios, dos quais sempre coro, disse ter 19 anos e fazer administração. Presenteei-a com um livreto meu. Com elegante discrição o guardou.
Por fim, o moço renitente voltou pra mim e disse sobre o brilho no olhar:
- É só ingenuidade poeta... ingenuidade.
Ela riu, disse-me obrigado e ficou a olhar-me com admirada estima.
Fui para o ponto, peguei meu ônibus. Suspirei para o céu sem estrelas daquela noite de beleza ingênua.
As Origens do Nosso Verso Popular
III
Podemos falar do Brasil. Aviso aos poucos leitores desses pequenos ensaios que voltem aos anteriores, também aos intitulados “A Literatura de Cordel e a Influência Africana” e “A Trova e o Trovador” e ainda “Três Raças e Uma Musa”, todos estes partes da síntese das minhas pesquisas sobre as origens da nossa literatura popular em verso. Penso em mais alguns mini-ensaios, concluí-la.
Vamos ao que interessa.
Chegamos ao Brasil Colônia. Trataremos agora da matriz indígena, outra pouco estudada e citada pelos poetas acadêmicos de hoje, que querem tornar de origem puramente lusitana nossos versos populares.
Na sua Síntese de História da Cultura Brasileira, o Mestre Nelson Werneck Sodré, escreve que “... os religiosos responderam, em parte, pelo bilinguismo do século XVI, pela existência de uma língua, dita “geral”, que era a do índio – e só isso comprova a força de sua contribuição cultural – ao lado da língua oficial, o português; de uma língua popular, em contraste com uma língua culta; e, agravando o problema, paralelamente, o uso do latim pelo religioso, entre os pares. Tão grave pareceu às autoridades metropolitanas o bilinguismo e tão espantadas ficaram com a “extensão que ganhou o tupi, como língua geral, a ponto de ser utilizada até nos púlpitos”, que uma provisão de 1727 proibiu o seu uso.” Claro, o tupi como língua geral serviu de uso aos jesuítas na sua diabólica missão de catequização dos nativos. Mas, o interesse aqui é como se deu a contribuição indígena na literatura popular em verso, e para isso, serve como segundo guia “A Literatura no Brasil – Introdução Geral”, de direção do Mestre Afrânio Coutinho. Para este, houve uma ponte cultural dos índios com colonos e jesuítas, daí ele escreve:
“O índio não vivia só em guerras e a devorar seus semelhantes (brancos). Havia neles, também, o gosto do canto, da poesia a este inerente e o sentimento que a ambos dava fundamento.”
E tratando da reação do índio no cenário jesuítico:
“O engajamento do índio nesse cenário inusitado humanista novo-mundista é atestado pelo moralista francês Michel de Montaigne já no século XVI, no capítulo “Des cannibales”, de seu livro Essais, escrito de 1571 a 1580 e publicado neste último ano. Eis um exemplo dado por ele:
Cobrinha, um momento pára
Quero imitar teu primor
E fazer cintura rara
Para dar ao meu amor...
Que adorno sejas, somente,
De uma, a outra serpente...”
Lemos nos versos acima (não sei se foram traduzidos diretamente do tupi ou deste para o francês até chegar ao nosso idioma) que o índio dominou a métrica do homem branco, e a desenvolveu com temática própria, numa lírica simples e primitiva, afastada do renascimento europeu, mas próxima ao espírito medieval, trovadoresco, que também encontramos em Anchieta. Mas, o índio já tinha o hábito dos motes e da rima, como cita o próprio Afrânio Coutinho, “Gabriel Soares de Sousa(1587) assim dizia dos Tamoios:”
“...São grandes componedores de cantigas de improviso, pelo que são muito estimados do gentio, por onde quer que vão.”
Mesmo depois da proibição do tupi como língua geral da colônia, a influência indígena nos versos das cantigas populares ficaram. Como citei noutra postagem, houve a justaposição dos versos tupi e portugueses, como essa velha cantiga colhida por Couto de Magalhães da boca do povo no nordeste do séc. XIX:
Te mandei um passarinho,
Patuá miri pupé;
Pintadinho de amarelo,
Iporanga ne iaué.
Vamos dar a despedida
Mandu sarará,
Como deu o passarinho,
Mandu sarará,
Bateu asa, foi-se embora,
Mandu sarará,
Deixou a pena no ninho,
Mandu sarará.
Ou neste do grande poeta popular mineiro Caldas Barbosa, séc. XVIII, onde encontramos também a forte presença africana, como diz o próprio título, motivo do próximo ensaio; fiquem com os versos xarapins (camaradas em tupi):
Lundum de Cantigas Vagas
Xarapim, eu bem estava
Alegre nest’aleluia,
Mas para fazer-me triste
Veio Amor dar-me na cuia.
Não sabe, meu xarapim
O que amor me faz passar,
Anda por dentro de mim
De noite, e dia a ralar.
Meu Xararapim, já não posso
Aturar mais tanta arenga,
O meu gênio deu à casca
Metido nesta moenga.
Amor comigo é tirano,
Mostra-me um modo bem cru;
Tem-me mexido as entranhas
Qu’estou todo feito angu.
Se visse o meu coração
Por força havia ter dó,
Pois que o Amor o tem posto,
Mais mole que quingombó.
Tem nhanhá certo nhonhô,
Não temo que me desbanque;
Porque eu sou calda de açúcar
E ele apenas mel de tanque.
Nhanhá cheia de cholices
Que tantos quindins afeta,
Queima tanto a quem a adora
Como queima a malagueta.
Xarapim, tome o exemplo
Dos casos que vêm em mim,
Que se amar há de lembrar-se
Do que diz seu Xarapim.
Estribilho:
Tenha compaixão,
Tenha dó de mim,
Porqu’eu lho mereço
Sou seu Xarapim.
Com este lundum, afro-brasileiro e justaposto do falar tupi, fico por aqui.
Bibliografia:
WERNECK SODRÉ, NELSON. Síntese de História da Cultura Brasileira. RJ. 15ª Ed. Bertrand Brasil.
COUTINHO, AFRÂNIO. A Literatura no Brasil. Introdução Geral (Direção).SP. 7ª Ed. Global Editora.
ROMERO, SÍLVIO. História da Literatura Brasileira.Tomo Primeiro (Contribuições e Estudos Gerais para o Exato Conhecimento da Literatura Brasileira). RJ. 6ª Ed. Livraria José Olympio Editora.
A. DE AZEVEDO FILHO, LEODEGÁRIO. Síntese Crítica da Literatura Brasileira. RJ. 1971. Edições Gernasa.
Que Cem Flores Desabrochem
Não tenho exposto há tempos no virtual. Tenho sim, suportado a realidade com paciência e persistência dum jovem ancião. Contudo, é hora de balanço anual do meu trabalho como arte-educador. Nesse ano em que deixei muita coisa de lado por motivos pessoais, inda foi produtivo nesse aspecto. Deixarei então de lado os mini-cursos e fixarei num projeto literário de médio prazo realizado na Escola Estadual Roberto Santos – Narandiba/Salvador em parceria com a Associação Cultural do Cabula e apoiado pela Secretária de Educação do Estado através do TAL (Tempo de Arte Literária).
Quando tanto sentimos o negativo é tempo de falarmos do positivo.
Uma das oficinas que ministrei foi a de produção de poemas para alunos do sexto ano matutino. Eram duas turmas totalmente opostas, uma hiperativa a outra apática. As duas produziram desde o princípio, apesar das limitações do ensino e idade, bons textos em verso:
Eu não sei nada de verso
E eu não sei por que não sei
Sou menina bonita
Com inteligência entenderei
Só falta fazer o final
E assim eu terminei.
Stefany Santos Brito
5ª M2
Através de algumas leituras e dinâmicas rítmicas floresceram as ideias dos pequenos e pequenas:
Não gosto de matemática
Ela não me faz tão bem
Mas sei que lá no futuro
Ela servirá também.
Laís M.
5ª M2
A cada visita eles se interessavam mais. Ao contrário do que pensam os mestres pessimistas, o gosto pela leitura e escrita e a sensibilidade no trato das questões da vida não se perdeu de todo nesse perdido mundo que vivemos:
Para a minha avó
Seu amor comigo
É tão lindo
É tão doce
Que parece mel
Seu sorriso lindíssimo
Um abraço carinhoso
Seu brilho no olhar
Me faz encantar
Coisa boa da vida
Um ombro acolhedor
Uma mão que ajuda
Minha vida ser melhor
Seus dedos que semeiam...
As mágicas sementes
Da paz, da fraternidade
Do amor e do carinho.
Emily Oliveira de Souza
5ª M1
Aí foram versos livres, quadras, sextilhas, parlendas parafraseadas...
Eu sou idiota
Quebrei a porta
A porta quebrou
Meu pai entrou
Entrou minha mãe
Entrou meus cães
Chegou limão
‘Ranquei mamão.
Alberto Vinícius
5ª M1
E não pararam de produzir...
Nós educadores ficamos satisfeito com nosso trabalho quando descobrimos talentos e os ajudamos em seu caminho pelo mundo. Quem ousará dizer que não há criatividade expressiva, senso estético e intuição de verdadeira poetisa na meiga mocinha que me presenteou, depois de algumas dinâmicas rímicas, com versos ao mesmo tempo tão ingênuos, sonoros, inteligentes e inesperados como esses:
Lorival
Lorival rima com mal
Ele é um passarinho
Que canta, canta, canta...
Lorival canta que é bom.
Canta, canta Lorival...
Lori... Lori... Lori...
Lori... Lorival.
Cássia Pinto dos Santos
5ª M2
Disse mestre Ariano Suassuna certa feita em palestra em Eunápolis-Ba, “se derem um osso e um filé para o cachorro ele vai escolher o filé, não o osso”. Sentenciou logo depois:
“Só dão osso pra juventude”.
Não discordando do mestre, mas refletindo em outro contexto:
Virá dos ossos que nos reduziram o filé que comeremos no futuro.
Saudades e muitos beijos em meus alunos.
Dos poemas antes postados
Há poucos dias escrevi um soneto. Ontem entreguei no destino. O soneto como outros poemas não serão postados aqui. Pensarão então em qual critério faz um estar e outro não. O critério apareceu com o tempo. Hoje vários poemas não postaria, principalmente os primeiros, dos dias tenebrosos d’uma muda de espírito. Os outros são exercícios, exercícios de comunicação poética.
Da forma bela p’r’uma bela forma.
Uns bons exercícios, outros não tão bem executados. Importante é que foram úteis no aprendizado de novas formas ou variações p’r’os nossos versos populares. Uns fiz para amigas de carne e osso, outros p’ra gente que circula nesse real que não é atual. Peço obrigado a quem cedeu fotos que inspiraram e ilustraram essa fase do blog. Agora, falando sério, a fase é outra.
A muda do espírito está completa.
“...Quanto mais versamos os modelos, penetramos as leis do gosto e da arte, compreendemos a responsabilidade, tanto mais se nos acanham as mãos e o espírito, ponto que isso mesmo nos esperte a ambição, não já presunçosa, senão refletida” falava o mestre Machado de Assis no prefácio do seu primeiro romance. É dessa responsabilidade que falo, responsabilidade de quem escreve com generosidade, com sofrimento e o poeta é isso: um condenado a sofrer.
Algumas experiências anteriores serão aproveitadas. Os poemas com fotos continuarão, mas serão fotos cotidianas ou retratos da nossa realidade; lindas moças estarão dentro quando o mundo clamar um verso; e, logo, ficarão mais escassos poemas de circunstâncias. Os exercícios de comunicação ficarão para as prosas de arte-educador, onde na verdade estão sem estar. Os poemas que não, terão seu sim noutro destino.
Têm poemas que marcam etapas de nossa criação. O soneto que destinei ontem pôs por fim um tempo em mim. O fim também é um começo... começo d'outra coisa.
Há algo em mim que se repara...
Ontem meus olhos rasos d’água, uma dor não presunçosa, mas refletida, mudou algo que ainda hei de conhecer de forma simples.
Passos do destino que faz seu tempo em linha curva.
A muda do espírito não espera, quando você percebe já mudou...
As Origens do Nosso Verso Popular
I
Em outros dois pequenos ensaios postados aqui falei do trovador. Um pouco da matriz portuguesa, já largamente difundida, como da matriz africana, que por muito tem sido desprezada. A nossa literatura popular em verso sofreu a confluência da cultura negra (com seus cantadores) e indígena (no seu contato com os jesuítas), logo, sua formação e evolução difere daquela vinda dos trovadores da península ibérica, esses mesmos influenciados pela cultura árabe-negra em suas origens.
Vamos por tempo tratar do tipo europeu.
Num belo e erudito ensaio “Trovadores – tipos e condições” do mestre vanguardista Ezra Pound, que nos servirá como primeiro guia, ele diz que “A fortuna dos trovadores variava tanto quanto sua categoria, e eles provinham de todas as classes sociais”. Trovaram reis, monges, alfaiates, nobres e pobres cavaleiros num estilo por assim popular em sua natureza. Da importância da trova provençal diz o mestre:
“É verdade que, após a Renascença, cada século procurou, à sua maneira, aproximar-se do clássico; contudo, para compreender a arte do verso – essa parte de nossa civilização –, devemos começar pelas raízes, e essas raízes são medievais. A arte poética da Provença preparou o caminho para a arte poética da Toscana; e é o que prova Dante sobejamente em De Vulgari Eloquio. O legado da arte é uma coisa para o público, e outra muito diferente para os artistas que virão a seguir. A herança que um artista recebe de outros artistas pode ser pouco mais que certos entusiasmos, os quais geralmente lhe estragam a primeira obra; e um conhecimento definido dos modos de expressão, conhecimento que contribui para aperfeiçoar lhe as realizações mais amadurecidas. É uma questão de técnica”.
As trovas eram cantadas ou recitadas acompanhadas de viola ou alaúde, tanto nas tabernas e prostíbulos como nos palácios e mosteiros. Não pensem que só de amor falava os trovadores, a escola da sátira e da crítica social popular daí também deve sua origem. Nesta aprendemos que em todas as épocas os “barões faziam guerra em busca do lucro, sem pensar nos camponeses”. Quando o séc. XII deu por fim, e com ele suas trovas, é a escola da sátira (não sei ao certo o autor) que nos diz:
“Jamais tornaremos a ver Páscoas tão lindas
Como as de outrora, prazerosas, com canções
Não! as de hoje trazem alarmas e incursões
Vêm ornadas de guerra, tristezas e terrores,
Vêm ornadas de tropas e tropéis,
Sim, belo espetáculo é ver amo e pastor
Infelizes, seguindo sem saber aonde vão.”
Continuaremos da região de Provença para a Galícia, em outra postagem.
II
“Quando um homem de nosso tempo é extravagante a ponto de desejar familiarizar-se, tanto emocionalmente como intelectualmente, com uma época tão fora de moda como o séc. XII poderá tentar consegui-lo de diversas maneiras”, escreve Mestre Ezra Pound no seu referido ensaio. As maneiras sugeridas pelo mestre são basicamente três: ler as próprias canções nos livros antigos ou pergaminhos cobertos de iluminuras; tentar ouvir os versos acompanhados de música; e ainda, percorrer em pesquisa as estradas das colinas e dos rios da região de Provença. Como nosso objetivo é outro, iremos aproveitar, no possível, sugestões dos mestres anteriores em relação ao método.
As trovas não têm fim.
Da região de Provença foram para Espanha e de lá para a Galícia. Nosso segundo guia é o Roteiro Literário de Portugal e do Brasil, Vol. I, dos mestres Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda, que nos traz uma antologia desde o português arcaico ao contemporâneo. Estamos então no ano de 1189 com a Cantiga D’amor de Pai Soares de Taveirós, considerado por muitos a mais antiga em nossa língua:
CANTIGA D’AMOR
Como morreu quen nunca bem
ouve da ren que mais amou
e quen viu quanto reçeou
d’ela e foi morto por en,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!
Como morreu quen foy amar
quen lhe nunca quis ben fazer,
e de que(n) lhe fez Deos ueer
de que foy morto com pesar,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!
Com’ ome que ensandeceu,
senhor, cõ gran pesar que uiu,
e nõ foy ledo, nen dormiu
depois, mha senhor, e morreu,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!
Como morreu quen amou tal
dona que lhe nunca fez bem
e quen a uiu leuar a quen
a nõ ualia, nen a ual,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!
“Como morreu quem nunca bem/ ouve da pessoa a quem amou”, cantou um dos primeiros poetas na infância de nossa língua. Interessante perceber que os versos não são em redondilha maior, como a maioria dos versos populares de hoje; são oito sílabas sonoras (octassílabos); dispostos em quadras com um estribilho ou refrão como é usual no versejar popular de hoje. A deixarei assim, em forma arcaica, por não ser objetivo dessa postagem o excessivo número de notas para entendê-la na íntegra. As cantigas de amor galego-portuguesa floresceram no séc. XIII ao XV. Vieram as barcarolas, as baladas, as cantigas de amigo e maldizer... O português nasce cantando trovas, talvez por isso, até hoje somos de certa forma trovadores. Podemos sentir a evolução da língua e de sua melodia lendo outra cantiga, agora de Joam Rodrigues de Castelo Branco (séc. XV?), que possivelmente frequentou a corte de D. João II como pensa o estudioso J. J. Nunes:
CANTIGA SUA PARTINDOSSE
Senhora, parten tã tristes
meus olhos por vos, meu bẽ,
que nῦca tam tristes vistes
outros nenhῦs por ninguém.
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partyda,
tam canssados, tã chorosos,
da morte mays desejosos
çem myl vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora desperar bem,
que nῦca tam trystes vistes
outros nenhῦs por ninguém.
Nessa linda cantiga o português ainda é arcaico; a redondilha maior já predomina; e podemos entendê-lo sem muito problema. Percebemos o lirismo português em toda sua graciosidade. Creio que na rede temos versões dessa e da outra cantiga em ortografia contemporânea para o leitor mais curioso.
Vai o séc. XV e entra o próximo, poderemos falar do Brasil em outra postagem.
A LITERATURA DE CORDEL E A INFLUÊNCIA AFRICANA
Praça Inácio da Catingueira em Catingueira Paraíba
Fonte da Imagem: http://lindeiltonleite.blogspot.com/2009_05_01_archive.html
Quando se pergunta as origens de nossa literatura de cordel a resposta é sempre a mesma: o cordel tem origem lusitana. Os cordelistas da academia difundiram essa tese com base nos estudos de Luís da Câmara Cascudo, contudo, se lermos com atenção o mesmo autor, veremos que não é bem assim. Há poucos dias recebi de presente do amigo Carlos Verçosa, mestre em haicai, quando fui beber um Jatobá lá no Sodré, onde viveu e morreu Castro Alves, dois volumes da Fundação Casa Rui Barbosa intitulado “Literatura Popular em Versos” um de Estudos e outro de Antologia. Foi o que faltava para embasar o que eu e outros poetas populares já sabíamos: a literatura de cordel também tem origem africana. Deixo a palavra agora com Manuel Diégues Júnior no seu estudo “Ciclos Temáticos na Literatura de Cordel” do referido volume:
Esta influência, de origem lusitana, da cantoria dos fatos acontecidos e da formação do grupo para ouvir a leitura ou o canto narrado, não foi única; aqui no território brasileiro, e em particular no Nordeste, se encontrou com uma outra forma cultural muito semelhante: a de origem africana. Também os escravos vindos para o Brasil tinham não somente seus trovadores como também o hábito de contar suas histórias, cantando ou narrando; são os famosos akpalô registrados pelos especialistas em estudos africanos no Brasil. Em uma de suas obras, Luís de Cãmara Cascudo recorda: “Toda África ainda mantém seus escritos verbais, oradores das crônicas antigas, cantores das glórias guerreiras e sociais, antigas e modernas, proclamadas das genealogias ilustres” .
Até as formas de estrofação mais populares na literatura de cordel já existia no seio das “negras velhas contadoras de estórias, narradoras fecundas de décimas ou sextilhas...” como afirma ainda o próprio Diégues. Por essa tradição, nossos melhores cantadores foram negros e o maior de todos cantadores do Nordeste o escravo Inácio da Catingueira. Este mesmo que num trecho da famosa peleja (1870?) com Romano de Teixeira, numa das dezenas de versões, cantou:
Coisa que eu faço no mato
Ninguém faz no tabolero
O que o branco faz no duro
eu faço num atolero;
O que faz no mês de março
Eu tenho feito em janeiro,
O branco bem amontado
O nego em qualquer sendeiro
A concessão que lhe faço
É correr no meu acero
Embora o diabo lhe ajude
Eu derrubo o boi primeiro.
Inácio da Catingueira vem da tradição dos negros contadores de histórias, os bantos, que tanto influenciou o ritmo e poesia brasileira. Ao lado da influência dos bantos temos em outro artigo do mesmo volume da Casa Rui Barbosa “A compadecida e o Romanceiro Nordestino” do mestre Ariano Suassuna, no qual ele fala das influências da literatura de cordel na composição do Auto da Compadecida, a seguinte confissão referente ao terceiro ato:
“...Mas essa influência ibérica foi muito menos direta, para a criação do terceiro ato, do que a de um auto popular nordestino, O Castigo da Soberba, citado por Leonardo Mota e Rodrigues de Carvalho – sendo que a versão citada por este último chama-se A Peleja da Alma e tem autor conhecido, o Cantador paraibano Silvino Pirauá Lima. O que pode acontecer é ser esta história, como as outras duas, também de origem moura ou ibérica, com as raízes fincadas nesse mundo mítico mediterrâneo que é tanto peninsular como árabe-negro, e, portanto, brasileiro e nordestino.”
É que todos são sabedores da influência árabe-negra no trovadorismo europeu. E foi desse movimento que surgiu a literatura de cordel. O espantoso é como se difundiu uma versão da origem puramente lusitana no nosso cordel, pois o próprio cordel lusitano já tinha sofrido a influência árabe-negra em suas rimas e temas. Quando os primeiros poetas e cantadores chegaram ao Brasil foi o batuque africano que soou mais alto, escutamos isso no Baião, no Coco, na Embolada e nas rimas ágeis e fáceis dos nossos melhores cantadores e poetas populares em sua maioria africanos ou afro-brasileiros.
Continuarei com meus estudos práticos e teóricos que me fazem cada vez mais escutar os tambores da áfrica em meus versos
A PUREZA DA PIRIGUETE
“Muitas coisas verdadeiras são soberanamente maçantes.
Assim, a metade do talento é escolher dentro do
verdadeiro o que pode se tornar poético.”
Balzac
No interior gosto da roça, na capital adoro a favela. Deve ser porque nasci na favela e fui criado solto nas mangas. Atualmente moro numa favela em Salvador. Da casa que moro assisto de camarote os pagodes da minha terra. Os pagodeiros e pagodeiras são os únicos, junto com as irmãs e irmãos do hip-hop, a me chamarem de poeta. Não sabem eles quanto fico lisonjeado por isso. Às vezes, como bons índios que também somos, ficamos na roda conversando sobre os alemães, a repressão policial e outras crônicas correntes na comunidade.
Deixarei p’ra outra feita esses diálogos e fitarei meu olhar numa moça.
Moça, mocinha na flor da idade. Nunca perguntei o nome dela. Vejo-a requebrando no pagode dos fins de semana. Quando nos afastamos um pouco do mundano podemos separar as coisas. Olho tudo d’um mirante particular. Moça, mocinha linda, porém piriguete. No trato como fato social a piriguetagem contemporânea, resultado inconsequente da liberação sexual da mulher e perpetuação cultural do machismo, sempre existiu com outros nomes: doidivanas, boneca de trapo, malandrinha, ladrona, pistoleira e outros tantos adjetivos. A primeira vista a piriguete é o inverso da antiga piriquitete. Enquanto esse adjetivo era usado p’ra mulher que se veste com decência e sem ostentação, a nossa se veste indecente, ostentando a única coisa que possui – o corpo.
As piriguetes são um problema sociocultural.
Contudo não são uns corpos sem alma. É da alma d’uma delas que quero um pouco falar.
Aqui d'onde escrevo tem três entradas ou saídas. Uma das, é um beco de chão barroso que serve de sindicado à juventude local. Depois do beco vem uma ruazinha com a beleza nostálgica do morro. Nessa mora a moça. Devo ser para ela uma figura exótica: chinela de couro, chapéu, barbicha mal feita e com minha feiura singular. Vou pela ruazinha sempre que posso: gosto do traço das casas, das cores, dos meninos aprendendo cavaquinho e pandeiro. Dirão talvez ser eu romântico. Mas de certo, tudo isso é muito poético p’ra mim.
Ela é negra, rosto de traços fortes e de expressão dengosa, cabelos d’um cacheado postiço, corpo em curvas arredondadas com andar de elegância rústica. Logo quando cheguei por aqui ouvi-la dizer, “gostosa sou eu!”, porém, quando me avistou, abaixou a cabeça no que diriam sonsice.
Não era sonsice.
D’uns tempos p’ra cá a moça andava contemplativa. Seria uma paixão adquirida ou perdida, seria problemas familiares ou na escola. Não sei. Sei que passava e ela olhava-me e desviava o olhar para um horizonte só seu. “Oi moça, tudo bem?”, respondia um simples “oi” monossilábico, depois calava, mesmo estando junto com as amigas, contrastando com a piriguete conversadeira que cansei de escutar no beco. Numa dessas passagens por lá, estranhei-a cochichando com uma parceira de piriguetagem. Como ouvido de poeta só é comparado ao de mulher ciumenta, escutei dizendo que mudaria o guarda-roupa nas compras de fim de ano.
Esperei assim a troca.
E veio em surpresa... Alguns dias atrás passando pela viela, meus olhos fixam num vestido parecido às domingueiras das moças do interior. Do vestido passo p’ro passo que lhe veste. Do passo que lhe veste passo p’ro rosto que lhe sustenta. Era a moça. Não aguentei e disse, “moça... ‘cê fica bonita com esse vestido”, e adiantei o passo. Já chegando ao beco escutei um balbucio de alegria, virei e era a moça pulando e sorrindo contente. Não pulei, mas sorri. Cheguei em casa ainda conservando o sorriso na lembrança da mocinha satisfeita com o elogio. Talvez, quem sabe, por nunca receber um tal.
Mais recentemente outra novidade, a saia que era mini já não é, e a bermudinha que cortava a bunda em banda já não corta. Camisetas decentes; até bordado a moça deu p’ra usar. Pensei então ter se convertido ao evangelho. Que nada. Nos fins de semana tava a moça lá no seu pagode de lei.
E do pico continuo a fitá-la.
Outra surpresa. Não mudou apenas as vestimentas, mas o comportamento. Cruza as pernas, paga o que consome e escolhe com cautela o homem que quer. Será um amor, um desamor, a personalidade forte de outra mulher... não sei...nem sei...
Sei que a moça. A mocinha linda. A piriguete. Torna-se uma bela mulher emancipada. Sem perder, assim, a baianidade jamais.
REMA A RIMA RIMADOR
Poeminha sem rima
Desço Os Aflitos aflito...
Bem antes do sol se ir,
Fiz um poema p’ra lua
Que só apareceu na noite.
Hoje vou falar da rima. Rimar na prosa é em geral defeito estilístico. No verso a rima tem função melódico-harmônica e mnemônica. Como não cheguei ainda a tratar da melodia, tampouco da harmonia do verso, tratarei a rima como noção intuitiva. Só chegarei rasteiramente às noções didáticas. O blog segue essa sequência de oficina p’ra iniciantes, e caso não morra, chegarei aos devidos aprofundamentos dos temas. Assim, para melhor compreensão, o leitor deve sempre retornar a postagens anteriores.
Feito o preâmbulo prosseguiremos.
“Rima é a uniformidade do som na terminação de dois ou mais versos” disse o mestre Bilac em seu tratado. No mesmo, o mestre diz que “os árabes da Espanha transmitiram o uso da rima aos trovadores de França; mas, antes disso, já ela tinha sido usada pelos poetas francos” em seus poemas e hinos religiosos. Antes da idade média encontramos seu uso na Ásia, África e América, na antiguidade européia o uso era restrito, quase por acidente.
Feito esse pequeno resumo histórico vamos ao que interessa.
Falam da rima perfeita,
Também falam rima pobre
Pro poeta que não nobre
Rimando a rima imperfeita,
A rima fica sujeita
Ao seu preço de valor,
Se paga ao compositor
Pelo preço sua rima,
P'ra se fazer obra prima
Rema a rima rimador.
Podemos classificar a rima de várias maneiras. Acho melhor, para o objetivo dessa postagem, classificá-las em consoantes e toantes. A rima consoante, como na décima que escrevi de improviso acima, o som está em seus conformes, desde a vogal ou ditongo do acento final até a última letra do verso. A rima toante acontece quando as vogais se aproximam sonoramente, como nesse exemplo que faço agora:
Faço rima toante...
A música assim ande,
Andamento traquilo
Pro moleque traquino
Que gosta de samba
E de dançar ciranda.
Na literatura de cordel, na nossa poesia popular tradicional, encontramos o emprego das rimas consoantes. Na música popular brasileira contemporânea, no ritmo e poesia popular norte-americana, encontramos o emprego das toantes ao lado das consoantes. Quem quiser ver o emprego das consoantes sugiro os poetas do romantismo e os cordelistas, para as toantes a obra de Cecília Meireles e de João Cabral de Melo Neto são exemplos bons de emprego das mesmas.
A importância da rima deduz do seu conceito: ao momento que ouvimos um som semelhante ao outro já ouvido, a atenção se volta ao som anterior, lembramos assim o som que ouvimos antes. Como existem formas fixas de disposição das rimas, o movimento contrário também é importante: esperamos escutar o som semelhante no próximo verso onde recairá a próxima rima já predisposta na estrutura da estrofe. É o que acontece na poesia popular e no repente.
Temos diversas formas de dispor as rimas na estrofe, mas em resumo três são as principais:
Cruzadas ou entrelaçadas como nessa trova popular:
Não quero de brincadeira
Dizer adeus a ninguém
Quem parte leva saudade
Quem fica sofre também.
Em parelha como no exemplo que penso agora:
Sem ter um vintém
Não pego seu trem,
Só tenho ideal
Que seja real,
Mas, tendo um amor,
Eu peço um favor,
Pois sendo poeta
Tenho amor por meta.
E as misturadas, exemplo que tiro de Olavo Bilac:
De uma eu sei, entretanto
Que cheguei a estimar,
Por ser tão desgraçada!
Tive-a hospedada a um canto
Do pequeno jardim,
Era toda riscada
De um trago cor de mar
E um traço carmesim.
Claro que essas combinações fundamentais podem ser distribuídas de outras maneiras. Posteriormente trataremos das várias formas de se fazer cordel, concluindo de bom grado o estudo básico sobre a rima.
Nas minhas oficinas aplico dinâmicas próprias para o aprendizado das rimas. Espero que tenha contribuído um pouco para os interessados no assunto, mesmo que a prática seja melhor que a teoria.
...Esses dias estou mais para fazer versos do que falar sobre eles.
Como sempre voltarei ao tema quando me der na telha.
Até.
Bibliografia:
BILAC, Olavo e PASSOS, Guimarães. Tratado de Versificação, Rio de Janeiro, 1905, Editoração Eletrônica: Nunes, Ana Luiza e Abelaira, Paulo Mendes.
PIGNATARI, Décio. Comunicação Poética, São Paulo, 4º Edição, Editora Moraes.
CAMARGO REGIS, Maria Helena. Manual de Comunicação Poética, 1982, Santa Catarina, Ed. da UFSC / Ed. Lunardelli.
A TROVA E O TROVADOR
Coração que bate-bate...
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão passando sem sofrer.
Mário Quintana
Irei começar com as definições.
A trova hoje em dia é a forma poética composta duma só estrofe de quatro versos em redondilha maior, seu esquema de rimas é (abab). Na trova popular, como a de Mário Quintana acima, rima o 2º com o 4º verso, essa a forma mais comum encontrada no país. O trovador por sua vez é naturalmente quem compõe trova, sendo que no Rio Grande do Sul o trovador seria o que pra gente é o repentista.
Bem... a coisa se justifica por uma evolução formal da trova do séc. XII na região de Provença, França, aos nossos dias. Dizem que a quadrinha popular portuguesa e galega se transformou no que hoje damos o nome de trova.
A trova assim definida é a arte da síntese.
O trovador, principalmente na região sudeste do país, é o poeta que faz em apenas uma quadra um poema completo.
Assim arrisco uma...
Trovador de bom valor
Na quadra da rua dela
Antes que ele encontre a dor
Encontra a trova mais bela.
Mas, os poucos leitores do meu blog irão se perguntar sobre o que chamei de trova em vários poemas anteriores. É que tanto a literatura de cordel, como nossos poemas de circunstâncias, também evoluíram do trovadorismo aos nossos dias.
São cantigas de roda muitas das trovas populares. E com licença da academia, chamo de trova uns poemas que poderiam ser chamados de cantigas.
Dito isso, voltemos ao assunto.
A essência da trova é o “achado”. Dizem os eruditos que a palavra vem do francês “trouver” que significa “achar”. O trovador assim as acha, aos montes, como nessa bela trova anônima:
As rosas é que são belas,
São os espinhos que picam,
Mas são as rosas que caem,
São os espinhos que ficam...
O lirismo do trovador está em achar, no redemoinho do seu sentimento, no tormento da sua vivência, a quadra perfeita. É mais que uma forma de condensar o pensamento, é um verdadeiro estilo de vida. Eu que vivi a maior parte da infância em Eunápolis, extremo-sul da Bahia, tive a oportunidade de entre mineiros e capixabas, amantes da trova, escutar algumas. Lembro das meninas, em roda cantarolando...
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou.
E outras tantas que nós todos já escutamos pelo menos por uma vez.
Por fim, colocarei o endereço da União Brasileira de Trovadores para quem quiser se aprofundar mais no assunto.
Referência:
O NOSSO TEMPO
Tem tempo que não escrevo uma prosa para o blog. Nasce gente e morre gente. Eu me perco e me encontro no destino que faz seu tempo em linha curva. Nosso tempo é tempo de pesquisa e descoberta... dos talentos maltratados, dos planos frustrados... dos poemas desiludidos.
Bom tempo nós vivemos. Não existindo outro tempo, além desse presente de Prometeu, nós ficamos com ele mesmo. Sem lutas de ideias, sem causas nobres, sem pensar no futuro além das baleias, vamos seguindo, rodopiando nessa grande nau dos insensatos.
Mas dirão: “ Lá vem o poeta com filosofia... só sabe criticar, nada faz além duns versos bobos”... Ou dirão os mais astutos: “ Poeta é só poeta e nada mais”. Então, ou devo calar para sempre ou fazer algo além duns versos pobres e medíocres.
Na certeza que faço quase nada no quase nada que nos reduzimos, sigo adiante.
Esses dias sem prosa no blog eu recebi muitas críticas. Umas em relação à poesia que faço, outras sobre o que faço da minha poesia.
Digo que a poesia que faço é a única que posso fazer. O que faço da minha poesia é proporcional ao que é feito no nosso tempo... quase nada. Não que não tenha projetos, esses mantenho em silêncio com os amigos. Sei que tudo que faz no tempo permanece no tempo.
Assim dou tempo às coisas.
Mantenho, apesar das dificuldades, as pesquisas em poesia popular e música popular brasileira. Tenho visto muita coisa boa: jovens aproximando e renovando aos poucos nossa cultura de raiz; o estado tomando algumas pequenas, porém valorosas, iniciativas para melhoria de acesso e difusão da nossa cultura popular; além dos mestres vivos e sua fonte inesgotável de sabedoria. Tudo isso é de muito valor no tempo do quase nada. Já falei, em postagens anteriores, sobre o papel do poeta popular, não entrarei de novo nesse assunto. O que falo agora é do nosso tempo. Nele vejo, sem pessimismo, que as questões mais fundamentais são postas de lado.
O tempo do quase nada é o tempo da superficialidade.
Querem quantidade em detrimento da qualidade. Sem saber que estamos cheios de coisas descartáveis. Mas, emerge aos poucos, do lixão que fizeram do mundo antes e durante a crise econômica e cultural que vivemos – a qualidade. Tem gente boa por aí fazendo um quase tudo em suas respectivas áreas. Entramos num tempo em que é necessário abrir o leque de possibilidades. Pois, como são poucos os artistas sérios, esses terão que fazer um quase tudo para enfrentar o quase nada de nossa época.
Esse é nosso tempo... o tempo do quase nada é o tempo do quase tudo...
Precisamos, e não tenho tendências para profecias, transformar o quase nada em nada e o quase tudo em tudo.
Tem palavras caras para mim, essas, na minha insignificância, não ouso tocar.
Para reflexão final tem uma frase que sempre ouço por aí:
“Isso é um acontecimento histórico!!!”.
Suspeito que o único acontecimento histórico da nossa época é ela não ter sequer acontecimento histórico algum.
Enfim, nessa prosa que diz quase nada, me disperso e despeço do leitor.
A TERRA DO BARRO
Barro de valor
Quando ele pisado
Depois repisado
Pelo amassador,
Vai pro pelador,
Então chega o oleiro
Que o tem companheiro
Da forma infinita,
Com peça bonita,
Suor verdadeiro.
Mulher burnideira,
Delicado trato,
Com a pedra e o ato
Ela dá a maneira,
Com a mão certeira
A peça refina
E no fogo a sina
De trabalho pronto,
São tantos, não conto
Senão desatina.
“Começou as mulheres com barriga quando começou a existir mulher, isso é tradição”, disse o mestre oleiro Zé das Baianas numa conversa que tive com ele em sua olaria no distrito de Maragogipinho. Parafraseando o mestre, começou o trabalho com o barro desde que ele existiu para o homem, isso é tradição.
Pra quem não conhece, Maragogipinho é um pequeno povoado, com mais de 2500 habitantes, na entrada da Costa do Dendê, recôncavo baiano. Passei cinco dias no distrito aprendendo com essa gente simples de qualidade inestimável. Beirado pelo manguezal do rio Jaguaripe, Maragogipinho é o maior polo de cerâmica da América Latina. E isso não é por acaso. Diz o povo do lugar que os índios já trabalhavam com o barro, depois vieram os jesuítas que lhe ensinaram a técnica do torno.
Mas tudo começa mesmo com o amassador.
O barro extraído no barreiro, geralmente nas fazendas de Aratuípe, município ao qual pertence o distrito, é carregado em caçambas, levado em carrinho de mão para os pés do amassador. Pisado e repisado vai para o pelador, batente de madeira onde se termina de amassar o barro e lhe tirar as impurezas. Daí o barro pode ser lavado: espera secar, mói, joga numa vasilha com água e vem peneirando, então passa pra um vaso de barro que suga o excesso de água. Material esse mais delicado que serve para peças finas e detalhadas como santos, dizem serem poucas as pessoas que o sabem fazer. Ou o barro vai direto para o torno: nele o mestre molda o bojo ou chaboque, cone ou cilindro ou outra forma que serve como base para trabalhar diversas peças; se não, o mestre ergue já uma peça pronta como um jarro. É um processo de paciência, pois no trabalho do torno o oleiro tem que prestar atenção se ainda há alguma impureza no barro.
Verdadeiro trabalho de artesão.
Depois vêm as mulheres.
Com uma pedra elas vão burnindo a peça. Burnir é polir a peça verde, que não foi para o fogo. Esse trabalho só é feito por mulheres. Sentadas na porta de suas casas encontramos elas, de todas as idades, conversando e burnindo as peças de barro. A peça pode não ser burnida, quando isso acontece ela fica rústica. Fica rústica quando não passa pelas mãos femininas.
Depois é o fogo.
A peça verde amadurece no forno a lenha. Nele leva um dia ou dois pra queimar dependendo da peça ou do forno. Tirada do forno começa o acabamento. Pode ser pintada ou apenas vidrada. Vidrar é umedecer a peça com chumbo, levando novamente ao forno... dá aquele efeito de brilho que encontramos nas louças de barro, e deve fazer um mal à saúde da pessoa e do meio ambiente.
As peças prontas são vendidas por todo o país e pro exterior. Nas olarias também são vendidas pros visitantes. Bonito é ver as canoas se enchendo de peças de barro e sendo levadas com o rio para Nazaré das Farinhas, de lá para as feiras das cidades circunvizinhas...
Bonito é ver que neste lugar a tradição é respeitada, é fonte da riqueza local. Bonito é ver o povo tirar do manguezal seu alimento, e defronte pro rio se reunirem bebendo e sorrindo sua fartura. Bonitas são as pessoas alegres e generosas desse pequeno paraíso conservado, apesar de tudo, na sua fauna, flora e humanidade.
O CORPO DO VERSO
Quando o caso é extenso melhor dividir em partes.
Em outro pequeno ensaio postado aqui falei do ritmo poético*. Prometi falar da métrica. Aconselho aos navegantes retornar a ele. Não que se trate de assunto difícil, mas é que a ordem do dito aqui pode alterar o produto do lido aí.
Como não tenho cumprido muitas promessas feitas nas postagens anteriores, sem muita demora vamos ao assunto.
O ritmo é o espírito das palavras, o metro é o corpo do verso. Ou, academicamente falando, o metro é o modelo, a competência da qual o ritmo é a realização individual, o desempenho, a performance.
No mesmo metro existe vários ritmos. Existe o mesmo ritmo em metros diferentes. E isso serve tanto pros poemas de verso dito livre como pros de métrica silábico-acentual.
Fiquemos somente com o último.
A métrica utilizada nos poemas populares geralmente é internalizada de maneira intuitiva. Passa de pai pra filho, de adulto pra criança, sem que não se perceba suas regras. Sabemos, porém, que ela é a mesma aplicada nos poemas eruditos. A diferença é que o poeta popular faz uso da fala corriqueira, ele escuta mais o falar da gente de carne e osso, enquanto o erudito escuta mais o que fala sua biblioteca ou sua cabeça, esta que não deixa de ser também de carne e osso.
Podemos começar então a falar de metro pela redondilha maior.
A redondilha maior ou verso de sete sílabas poéticas é a medida mais comum nos poemas populares. Seu ritmo é variado, seu aprendizado é fácil. Fácil porque usado comumente nas músicas populares, ditados e nos pregões dos feirantes.
Escute os exemplos:
Nós temos peixes fresquinhos!
1 2 3 4 5 6 7
Olha o feijão dois reais!
1 2 3 4 5 6 7
As sílabas sonoras são contadas até a última tônica. No caso do segundo exemplo falamos “Olhao feijão dois reais”, acontece que as duas vogais em itálico se encontram, se juntam na fala comum. Soa assim somente uma sílaba poética.
Escutemos mais um pouco:
Você diz que dá na bola
Na bola você não dá.
O Pouco com Deus é muito,
O muito sem Deus é nada.
São infinitos exemplos.
Para fixar a métrica desse verso é bom fazer exercícios como leitura de poema em redondilha, escutar e cantar letras de músicas nesse metro e praticar, sem se preocupar com o conteúdo do verso, a escrita nessa medida. Indico pro iniciante, depois desses exercícios, a construção da quadrinha popular ou trova, como essa:
Pra falar em redondilha
É bem fácil como o quê,
Não precisa muita ajuda,
Só precisa de você.
Fiquemos por aqui. Quem quiser saber mais sobre métrica olhe nos endereços do lado esquerdo da página, tem muita coisa boa. Ou espere eu dar na telha e postar as outras partes do tema. Ou, quem sabe ainda, ficar ligado nas minhas oficinas ou dos amigos poetas espalhados no mundéu.
Até a próxima...
*Ver: Para uma percussão poética.
Bibliografia:
BILAC, Olavo e PASSOS, Guimarães. Tratado de Versificação, Rio de Janeiro, 1905, Editoração Eletrônica: Nunes, Ana Luiza e Abelaira, Paulo Mendes.
CAMARGO REGIS, Maria Helena. Manual de Comunicação Poética, 1982, Santa Catarina, Ed. da UFSC / Ed. Lunardelli.
PIGNATARI, Décio. Comunicação Poética, São Paulo, 4º Edição, Editora Moraes.
CAI CAI BALÃO CADÊ MEU SÃO JOÃO
Começou os festejos juninos e momento de festa não é de reflexão. Além dos festejos, a copa do mundo toma todas as conversas analíticas nos bares da capital e do interior. Então, o correto era falar sobre o São João da Copa, como o futebol e o forró fazem parte da cultura nacional, como o imaginário popular é de todo tomado por esses fundamentos da nossa cultura.
Mas vamos subir o rio...
Fala-se muito da modernização do forró: forró universitário, forró eletrônico, arrocha e coisa e tal. Fala-se: tradicionalistas, forró pé-de-serra, forró erudito e tal e coisa. O que está por trás e pela frente de tudo isso é a crescente profissionalização do setor e a descaracterização das tradições populares.
O produto que nos apresentam todo dia.
Sem muita reflexão percebemos no São João antigo, comparado com o atual, dois elementos de suma importância na formação moderna de nossa cultura. Na música - o Choro, na literatura - o Cordel. O Choro foi e é a música instrumental brasileira, influenciou gerações de músicos do Samba à Bossa Nova e do Baião ao Coco. A Literatura de Cordel da mesma forma influenciou poetas e letristas de várias gerações.
Acontece que choramos sem o Choro e nos enforcamos sem o Cordel.
Isso que dão o nome de modernização é nada mais do que um descaso com a formação sensível, coisa da contemporaneidade. Por outro lado, os tradicionalistas são os que só sabem reclamar, sem perceberem que não mudando os fundamentos podemos transformar as coisas.
Uns pecam pela ignorância dos princípios e outros pela falta dos mesmos.
O fundamental é ser feliz...
Não sei onde passarei o São João, mas sei o que vou encontrar. Dançarei dois pra lá e dois pra cá, tomarei licor, soltarei fogos nos ares. Quem sabe encontrarei um chamego bom com Rosa ou Carolina. Sei que vou curtir a festa e abstrair qualquer tipo de análise.
Que momento de festa não é de reflexão.
TRÊS RAÇAS UMA MUSA
Passei um bom tempo sem prosear aqui. Andei corrigindo a minha vida, estava uma bagunça por fora e por dentro. Resolvi por fora fazer um curso técnico, sou estudante do IFBA, e por dentro resolvi dar atenção maior ao mais natural e importante dos sentimentos (leia os dois sonetos postados) dum homem – a mulher.
Sinto agora que posso prosseguir minha caminhada com menos ilusões.
Contudo, não parei meus estudos e produção em literatura e música popular brasileira. Entre uma aula de física ou de programação li o saudoso Sílvio Romero . Este, como muitos sabem, desenvolveu no final do séc. XIX ao início do XX uma vasta pesquisa e crítica sobre nossa literatura popular. Para o pesquisador nós somos um produto da mestiçagem de três raças: o negro, o índio e o branco. Quando não somos mestiços na cor, somos nas idéias. O que chamou minha atenção e me clareou o juízo foi como se processou esse fenômeno na poesia popular brasileira. Digo a poesia, mas o próprio mestre escreve que “nas produções da musa popular a poesia, a música e a dança se entrelaçam por tal modo, que muitas vezes é impossível dizer qual delas predomina” .
Na literatura nacional, como aconteceu com outras literaturas coloniais, primeiro houve o fenômeno da justaposição dos falares indígenas e africanos com os de origem portuguesa. No tratar da justaposição de versos tupis e portugueses o primeiro estudioso foi Couto de Magalhães. Leia as quadrinhas por ele colhidas da boca do povo no nordeste no início do séc. XIX:
Te mandei um passarinho,
Patuá miri pupé;
Pintadinho de amarelo,
Iporanga ne iaué.
Vamos dar a despedida
Mandu sarará,
Como deu o passarinho,
Mandu sarará,
Bateu asa, foi-se embora,
Mandu sarará,
Deixou a pena no ninho,
Mandu sarará.
Agora leia essa em yorubá e português colhida pelo próprio Sílvio Romero cantada por uma baiana filha de escravos, a senhora na quadrinha é a Nossa Senhora do Rosário:
“Nosso rei do Congo,
Mumbica,
Onde havemo’ achá-lo,
Senhora?
“Ai, ai, tesumento,
Qui tate,
Ai, ai, cambaete,
Senhora...”
No início nossa poesia popular foi assim, depois como mostra o mesmo Sílvio Romero houve uma fusão dos falares. Assunto que deixarei para outra prosa.
Bibliografia:
ROMERO, SÍLVIO. História da Literatura Brasileira.Tomo Primeiro (Contribuições e Estudos Gerais para o Exato Conhecimento da Literatura Brasileira). RJ. 6ª Ed. Livraria José Olympio Editora.
CONVERSA
Aqui tenho conversado sobre várias coisas, às vezes em tom afetivo e não afetado, outras em um tom efetivo mas afetado. Os anos de educador produziram seus efeitos negativos – a conversa professoral.
Quanto mais pensamos que sabemos conversar aprendemos que não. O uso do cachimbo faz a boca torta. Criamos modelos para a conversa e se esses modelos não são flexíveis às nossas afetações acabamos conversando mal.
Escreveu Pascal em seus Pensamentos que, “Da mesma forma que se estraga o espírito, se estraga o sentimento. Espírito e sentimento se forma pela conversa. Espírito e sentimento se estragam pela conversa. Assim as boas ou más conversas o formam ou o estragam.” Concordo. Sabe-se que temos boas conversas que fazem mal ao espírito, outras más fazem bem, temos inda o conversado e desconversado e o não conversado mas feito. Tudo isso é verdade. Porém, o espírito deve ser formado para conversar e aí o pensador continua: “Importa, portanto, saber realmente escolher para formá-lo em si próprio e não estragá-lo; e não se pode proceder a essa escolha, se já não o tiver formado e não estragado.” É um círculo vicioso que gera insensibilidades, hipersensibilidades e até apatia, “são bem felizes aqueles que conseguem sair dele”.
O poeta é formado para conversar bem sobre as dores e os prazeres do espírito. Sua busca é sempre melhorar o verso no converso. Poeta também se estraga, não creio que pela conversa, essa quase sempre o conserva, mas sim, pela má formação que nos é imposta socialmente.
A estupidez dos preconceitos sociais deve ser superada não só pela conversa.
A prática sensível do poeta é uma boa arma para superá-los. Pratica sensível de ir na profundeza turva do nó que a vida nos dá, desatá-lo, seguir em frente. Manter-se sensível no mundo de hoje é algo difícil. Temos que enfrentar as dificuldades. Nossa formação sensível não impede que nos estraguemos, nos dá uma escolha: ser poeta e não se estragar, se estragar e deixar de ser poeta. Não existe meio termo quando se trata da relação entre espírito e sentimento. O poeta que estraga o espírito inevitavelmente estraga o sentimento, logo estraga sua conversa, quando não todo seu verso.
Quando estamos prestes a se estragar é hora de regenerar, é hora de depuração. A modernidade substituiu a sinceridade dos feitos e sentimentos pela sinceridade artística com o pretexto de aniquilar o lirismo. Na verdade se buscava fazer poesia com base na formação técnica em detrimento da sensível. Por isso, os poetas de hoje buscam uma formação sensível em detrimento da técnica. Coisas da produção espiritual do mundo.
As conversas desse blog são tentativas para formar o espírito com técnicas que não atrapalhem a expressão das ações e sentimentos. Toda arte tem conversas de expressão e conversas de conteúdo. Cabe a nós colocar a conversa em termos de formar o fora e dentro do fazer poético. Essa sempre será a pretensão de nossas conversas, a ambição maior do nosso espírito.
PARA UMA PERCUSSÃO POÉTICA
Das conversas que tenho tido com amigos percussionistas e do meu trabalho como arte-educador andei refletindo sobre o ritmo e poesia popular. Desses estudos e reflexões concluí que as semelhanças entre música e poesia ultrapassam a mera coincidência de ser duas artes que tem como matéria o som. O ritmo musical tem sua origem relacionada ao ritmo poético. Nos versos da antiguidade clássica observamos a dependência do primeiro ao segundo: É que o acento das palavras e sua duração em breves ou longas eram reproduzidos no acompanhamento musical. Isso atravessou milênios e a música só se libertou por completo do ritmo poético por volta do séc. XIX. Mas a música popular, aquela feita para dança e rituais – e como a maioria feita hoje para fins comerciais –, inda depende do ritmo poético.
Para o poeta a divisão silábica é feita pela fala e não pela gramática, disso resulta ser a sílaba poética ligada à pronúncia, à sonoridade das palavras no verso. Daí decorre didaticamente a definição do ritmo poético como uma sucessão, em intervalos regulares, de sílabas fortes e fracas percebidas por nosso ouvido. Também de maneira didática, o verso pode ser definido como um período rítmico completo. Semelhante, o ritmo na música é o movimento dos sons regulados pela sua maior ou menor duração.
Não podemos confundir ritmo e métrica, a métrica é um corpo onde o ritmo é o estado de espírito desse corpo. Na mesma métrica temos diversos ritmos, por isso, na educação poética devemos começar pelo ritmo e não pela métrica.
Para melhor compreensão do ritmo poético vamos utilizar a terminologia da educação musical. Na tradição do ocidente, lembrando que contamos o verso até o último acento, temos quatro esquemas rítmicos fundamentais que descrevo abaixo.
As sílabas em negrito são fortes (tônicas), as em itálico que ligam duas sílabas gramaticais indicam ligações rítmicas, isto é, a emissão duma só sílaba sonora ou poética.
Binário ascendente – acento fraco seguido por um forte
Ex:
Amor
Ou desse mesmoenigma (Carlos Drummond de Andrade)
Binário descendente – acento forte seguido dum fraco
Ex:
Louco
Velha, Grande, toscae bela. (José Régio)
Ternário ascendente – 2 acentos fracos seguidos por um forte
Ex:
Caminhar
Contemplandoo teu vulto sagrado... (Hino à Bandeira letra de Olavo Bilac)
Ternário descendente – acento forte seguido de 2 fracos
Ex:
Pétala
Choupos trazidos de mágoa (José Régio)
Esses ritmos fundamentais podem ser compostos e combinados de diversas maneiras. O importante é que a estrutura rítmica não atrapalhe a forma das palavras no verso.
O ouvido sempre é o melhor guia do poeta.
Voltarei em outra postagem a tratar da métrica e posteriormente da palavra musicada e da divisão musical do verso.
Nas oficinas e mostras de ritmo e suas relações com a poesia e a música que realizei na Bahia e São Paulo entre os anos de 2005 e 2008 desenvolvi, junto com músicos, dinâmicas próprias para a assimilação do ritmo poético. Para os mais interessados em 23 de março desse ano, farei junto com o percussionista Ricardo Hardmann, na Biblioteca Tales de Azevedo, um mini-curso de ritmo e poesia popular brasileira.
Espero que tenha contribuído um pouco com os estudos dos jovens poetas e demais amantes do bom verso.
Bibliografia:
MATTOS PRIOLLI, Maria Luisa. Princípios Básicos da Música para Juventude. 1º Volume. RJ. 17ª Ed. Casa Oliveira de Música LTDA.
CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. RJ. 2ª Ed. Nova Fronteira.
PIGNATARI, Décio. Comunicação Poética. SP. 4ª Ed. Moraes.
AS VOLTAS EM TORNO DO SOL
Os anos passam no tempo e no espaço mesmo que o tempo seja ruim e o espaço apertado. A aparente calmaria toma conta do mundo em crise. As guerras se fazem inda nos mesmos territórios e pelos mesmos motivos . Já a fome, essa expandiu um pouco para barriga dos gordos.
O tempo continua de mediocridade.
A massa vive no calendário lunar: em tempo mensal ou até quando acabar o salário e receber o próximo; as pequenas e médias empresas e seus respectivos donos vivem no tempo do balanço anual; as grandes vivem seu planejamento de cinco ou dez anos; e as transnacionais fecharam seu ciclo de trinta ou quarenta anos arrastando o mundo para mais uma crise.
A eternidade é coisa do divino.
O preâmbulo acima é só para mostrar que contar e comemorar as voltas que o planeta faz em torno do Sol, as que damos junto com ele, é pura convenção. Na realidade o tempo humano depende de como produzimos e reproduzimos nossas vidas.
Faço trinta e duas voltas nesse ano e quem sabe faça mais uma reviravolta. O ano passou e estou como sempre insatisfeito comigo. Produzi pouco e cometi erros vulgares. Quem sabe em 2010 produza mais e cometa nobres erros.
Um nobre erro do ano passado e no qual quero errar cada vez melhor é esse blog.
A novidade será um roteiro com texto e fotos de festas e pontos populares da capital e do interior como havia sugerido em outra postagem. Também desenvolverei listas de livros, músicas e sítios para interessados em cultura baiana e brasileira. Continuarei desenvolvendo análises e resenhas dos clássicos da poesia popular; e ao cabo que for lançando outros cordéis irei disponibilizar para baixar os anteriores. Para isso, contarei sempre com os acertos e sugestões dos amigos.
E que esse ano não seja para todos só mais uma volta em torno do sol.
Destrinchando a História da Donzela Teodora* - Um Clássico da Literatura de Cordel
A literatura de cordel desde a sua origem reflete o imaginário popular de sua época. Muitos poetas e escritores eruditos viram nesse gênero algo de reacionário e retrógado: Histórias de reis, nobres ou burgueses que tinha nada haver com a realidade do povo. Mas, quanto mais pesquisamos esse gênero genuinamente nordestino, vemos que o cordel sempre esteve à frente ou à par de sua época.
A História da Donzela Teodora de Leandro Gomes de Barros, datada de 1905, é um bom exemplo disso. Trata-se de um romance em redondilha maior, 142 estrofes em sextilhas rimando os versos pares (xaxaxa), forma mais comum da literatura de cordel. No início do romance o poeta nos informa que a história não é por ele inventada, sim descrita direto de fonte da tradição oral:
“Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela”
Até a 11ª estrofe introduz a história da donzela: Um grande mercador húngaro andando certo dia pela praça da cidade de Tunis encontra uma escrava espanhola à venda; ele impressionado com a beleza dela a compra na mão dum mouro. O talento da jovem para as artes, ciências e filosofia é percebido pelo húngaro que a leva a aprender com os melhores mestres, logo a jovem supera quem a ensinou. Mas a partir da 12° estrofe acontece o principal ponto de transformação do enredo:
“Mas como tudo no mundo
É mutável e inconstante
Esse rico mercador
Negociava ambulante
E toda sua fortuna
Perdeu no mar num instante.
Atrás do bem vem o mal,
Atrás da honra a torpeza
Quando ele saiu de casa
Levava grande riqueza
Voltou trazendo somente
Uma extremosa pobreza.”
“Em casa só lhe restava/ A mulher e a donzela”, então ele pede a Teodora conselho para sair de tal situação. A donzela diz para o mercador que vá ao mouro e lhe peça empréstimo para comprar roupas e jóias; depois ir ao rei Almasor e oferecê-la por uma quantia de dez mil dobras de ouro. Como o rei ia achar o preço exorbitante, ele deve dizer-lhe que o dobro tinha gastado com ela. O mercador segue o conselho e quando o rei se espanta com a proposta, manda chamar um grande sábio instrutor em física, astronomia, matemática, retórica, história e filosofia para formular perguntas à jovem donzela.
Começa aí o desenvolvimento da trama. Descreve a heroína muito tímida, porém “não teve alteração”, quando o sábio pergunta sobre a gênese do universo, sobre os signos do zodíaco, ela prontamente responde. Tomado o primeiro como vencido, o rei manda chamar um segundo:
“O rei ali ordenou
Que fosse o sábio segundo
Foi um matemático e clínico
Um gênio grande e fecundo
Reconhecido por um
Dos sábios maior do mundo.”
Este a pergunta sobre a relação dos signos com a medicina, sobre a conduta das mulheres de todas idades, sobre a beleza feminina e suas formas. Aqui observamos na respostas da personagem alguns preconceitos de época. Ela não é uma feminista ao criticar as mulheres, mas suas falas e pensamentos são de todo femininos. Percebemos também a crescente complexidade das perguntas elaboradas, o que vai culminar na derrota do segundo sábio e na entrada do derradeiro.
Esse é um sábio de nome Abrahão de Trabador. Estamos na 67ª estrofe e o romance mantém um equilíbrio de mestre. Agora a donzela se encontra a vontade ao ponto de fazer uma aposta com o sábio: quem perder ficará nu e entregará todas as roupas e pertences ao vencedor. Ele aceita a proposta lavrada pela mão do rei. As perguntas tornam-se mais variadas e profundas:
“O sábio ali perguntou
Qual a coisa mais aguda?
Disse ela: - É a língua
Duma mulher linguaruda
Que corta todos os nomes
E o corte nunca muda.”
A agudez da jovem responde charadas sobre animais, religião e filosofia:
“Donzela, qual é a coisa
Que pode ser mais ligeira?
Respondeu: - O pensamento
Que voa de tal maneira
Que vai ao cabo do mundo
Num segundo que se queira.”
Nesse ponto o poeta consegue transmitir com perfeição a rapidez das respostas, utilizando as características do discurso direto, por vezes omitindo o verbo introdutório, outras vezes utilizando o direto e indireto na mesma estância. O pensamento de Teodora parece duma dialética irrefutável:
“– Donzela, o que é a vida?
Disse ela: - Um cais de torpeza
E que pode assemelhar-se
A vela que está acesa
Às vezes está tão formosa
E se apaga de surpresa.
Poderíamos aqui descrever todas respostas de Teodora, mas em suma: a sabedoria popular tem na personagem sua mais alta expressão; a sutileza de pensamento, o conhecimento enciclopédico, as metáforas simples e profundas. O sábio prevendo a derrota tenta uma pegadinha:
“Então inventou um meio
Para ver se pegaria
Perguntou: - O Sol de noite
Terá luz quente ou fria?
A donzela respondeu
Que à noite Sol não havia.”
Depois de dissertar sobre a questão, arrebata a quatro estrofes depois:
“O dia Deus fez bem claro
A noite fez bem escura
Se de noite houvesse sol
Estava o homem na altura
De notar esse defeito
E censurar a natura.”
Na 119ª estrofe começa a conclusão. O sábio vencido começa a despir-se; envergonhado não quer tirar a ceroula (cueca). Implora humilhado ao rei; esse diz para pagar a quantia que a jovem quiser; e ela pede a metade do dinheiro que seu senhor quer vendê-la. O rei, por fim, oferece de prêmio a donzela o que ela exigir; ela pede a quantia que seu senhor quer vendê-la mais a liberdade de voltar para casa.
A História da Donzela Teodora nos mostra o imaginário popular do fim do séc. XIX e início do XX sobre a mulher moderna: bem formosa e bem formada. É realista, pois a mulher, como na nossa sociedade, é tratada como objeto de troca, vendida como mercadoria. Teodora supera a escravidão através do seu talento e estudos, nos levando a refletir sobre a igualdade de gênero. No final ao negar a corte do rei, certamente prefere ficar com o senhor que lhe trata como filha, nos faz da mesma maneira refletir sobre a liberdade. Da escravidão vem nobreza, da pobreza vem riqueza e a força motriz dessa transformação é a substância de expressão duma mulher, a beleza, e sobretudo sua substância de conteúdo, a sabedoria.
* Encontra-se um resumo e o texto completo na rede no endereço:
Bibliografia:
História do Boi Misterioso e Outros Cordéis - Leandro Gomes de Barros - Ed. Hedra - 2004
Guia Prático de Análise Literária - Massaud Moiséis - Ed. Cultrix - 1970
Nova Gramática do Português Contemporâneo - Celso Cunha & Lindlei Cintra - Ed. Nova Fronteira - 1985
A Bahia só nos dá régua e compasso
Quando menino andava pelas mangas e ouvia o aboio do vaqueiro, pensava eu, na minha inocência, que esse homem conhecedor dos brejos e cachoeiras era dono daquela terra toda.
A inocência passou como passou o boiadeiro.
O que ficou foi minha memória e o que nem sei onde aprendi. Sei que aprendi na Bahia, parte na região cacaueira onde vivi a infância, outra parte na capital, no sertão e no recôncavo onde passava férias com meus avôs.
O boiadeiro foi meu mestre nas mangas. O mestre popular tem a peculiaridade de não se passar por mestre, depois é que damos o título quando reconhecemos seus profundos ensinamentos.
Hoje os mestres que me ensinaram, alguns mortos, muitos vivos e velhos, estão desmotivados, desconfiados e desesperançosos com o mundo.
É que tudo começou na Bahia: nossa alegria e tristeza; nosso luxo e pobreza; nossa união popular e desunião invejosa; nossa graça e desgraça histórica. Aqui começou nossa poesia, aqui se calou; aqui começou o samba, aqui se degenerou; aqui começou a capoeira, aqui tudo se caricaturou...
Dizem que é um espírito: o ranço da miséria ideológica portuguesa.
Esse espírito construiu uma indústria cultural perversa, onde o talento foi substituído pela simpatia, o trabalho pelo produto descartável e a disciplina pela lei do menor esforço. O melhor da nossa terra não é produto dessa indústria. É produto da qualidade de nossa mistura, que fez da terrinha centro cultural do país por muito tempo.
Talvez, para não pensarem que é pura crítica, sugiro compor um roteiro anti-turístico da Bahia, para atrair outro tipo de gente, gente que consuma o nosso filé e não só o acém com osso. Por enquanto nós, a juventude chupa-molho, resistimos. Alguns partiram para São Paulo, Recife, America do Norte e Europa a procura de valorização. Outros sucumbiram à indústria cultural. Outros simplesmente desistiram.
Estamos deixando ao abandono o melhor de nossa terra: os mestres inda vivos e os jovens talentosos.
Que toadas deixaremos pro futuro?
O PAPEL EM PRETO E BRANCO DO POETA POPULAR
"O argumento é comum
Pode bem argumentar,
O caso também é simples
Pode bem simplificar,
Mas comum não é ruim
Nem simples de desprezar. "*
O perceber, sentir e imaginar duma forma simples e profunda a vida, e a partir dela expressar no papel sua poesia é a característica do poeta popular. Não que um poeta erudito seja o contrário: complexo e superficial. Mas acontece que ele faz o papel de popular quando simples. Faz simples na forma, mas não o faz em sua profundidade.
Não podemos confundir o poeta popular com aquele que desenvolve temas de antigamente, nem o que com a régua na mão conta se falta uma sílaba sonora ao seu ouvido de antigamente.
Entre a tradição e a modernidade vive ele.
Sem a tradição perdemos a referência do passado, sem a modernidade perdemos a referência do presente, e sem as duas ou capenga de uma não podemos criar e construir a poesia popular.
"Não serei contra mau gosto
Pois meus versos assim são,
De métrica muito antiga
Pra não trocar pés por mão
Nem beleza por feiúra,
Estupidez por lição."
A tradição é a base que inevitavelmente temos que modernizar para nossa criação pertencer ao futuro.
O Papel social do poeta popular é perceber a poesia das pessoas simples, sentir profundamente seus problemas e sugerir através de seus versos a melhor maneira de enfrentar as questões da alma.
Ser poeta popular exige profundidade.
Todo poeta vive profundamente: nos erros e acertos, nos defeitos e perfeições, no vulgar e nobre... seus olhos rasos d'água, as dores d'alma, o sentimento consciente ou quase do vício e da virtude... o acompanha com a caneta na mão e o papel em branco.
A diferença do poeta popular para outro não é de quão profundo, mas em qual cultura baseia sua profundidade. É da cultura e sabedoria do povo, da praça, que tinge de preto seu papel em branco.
Quando o poeta popular perde seu papel ou mancha sua folha por um falso sentimento, fica sem escrever por lhe faltar paixão ou não mais apaixona o que ele escreve.
"A poesia também
Bate asas, voos lentos...
Os poetas se recolhem,
Bobos tomam os intentos,
Faço de mim o possível
Nos meus versos, sentimentos."
* Todas as estrofes extraídas do cordel "Canhoto no Tempo da Pornofonia ou Nem Todo Abismos é de Rosas" - Osmar Machado Jr - 2009
Comentários