Destrinchando a História da Donzela Teodora* - Um Clássico da Literatura de Cordel
A literatura de cordel desde a sua origem reflete o imaginário popular de sua época. Muitos poetas e escritores eruditos viram nesse gênero algo de reacionário e retrógado: Histórias de reis, nobres ou burgueses que tinha nada haver com a realidade do povo. Mas, quanto mais pesquisamos esse gênero genuinamente nordestino, vemos que o cordel sempre esteve à frente ou à par de sua época.
A História da Donzela Teodora de Leandro Gomes de Barros, datada de 1905, é um bom exemplo disso. Trata-se de um romance em redondilha maior, 142 estrofes em sextilhas rimando os versos pares (xaxaxa), forma mais comum da literatura de cordel. No início do romance o poeta nos informa que a história não é por ele inventada, sim descrita direto de fonte da tradição oral:
“Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
Dos sábios que ela venceu
E aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela”
Até a 11ª estrofe introduz a história da donzela: Um grande mercador húngaro andando certo dia pela praça da cidade de Tunis encontra uma escrava espanhola à venda; ele impressionado com a beleza dela a compra na mão dum mouro. O talento da jovem para as artes, ciências e filosofia é percebido pelo húngaro que a leva a aprender com os melhores mestres, logo a jovem supera quem a ensinou. Mas a partir da 12° estrofe acontece o principal ponto de transformação do enredo:
“Mas como tudo no mundo
É mutável e inconstante
Esse rico mercador
Negociava ambulante
E toda sua fortuna
Perdeu no mar num instante.
Atrás do bem vem o mal,
Atrás da honra a torpeza
Quando ele saiu de casa
Levava grande riqueza
Voltou trazendo somente
Uma extremosa pobreza.”
“Em casa só lhe restava/ A mulher e a donzela”, então ele pede a Teodora conselho para sair de tal situação. A donzela diz para o mercador que vá ao mouro e lhe peça empréstimo para comprar roupas e jóias; depois ir ao rei Almasor e oferecê-la por uma quantia de dez mil dobras de ouro. Como o rei ia achar o preço exorbitante, ele deve dizer-lhe que o dobro tinha gastado com ela. O mercador segue o conselho e quando o rei se espanta com a proposta, manda chamar um grande sábio instrutor em física, astronomia, matemática, retórica, história e filosofia para formular perguntas à jovem donzela.
Começa aí o desenvolvimento da trama. Descreve a heroína muito tímida, porém “não teve alteração”, quando o sábio pergunta sobre a gênese do universo, sobre os signos do zodíaco, ela prontamente responde. Tomado o primeiro como vencido, o rei manda chamar um segundo:
“O rei ali ordenou
Que fosse o sábio segundo
Foi um matemático e clínico
Um gênio grande e fecundo
Reconhecido por um
Dos sábios maior do mundo.”
Este a pergunta sobre a relação dos signos com a medicina, sobre a conduta das mulheres de todas idades, sobre a beleza feminina e suas formas. Aqui observamos na respostas da personagem alguns preconceitos de época. Ela não é uma feminista ao criticar as mulheres, mas suas falas e pensamentos são de todo femininos. Percebemos também a crescente complexidade das perguntas elaboradas, o que vai culminar na derrota do segundo sábio e na entrada do derradeiro.
Esse é um sábio de nome Abrahão de Trabador. Estamos na 67ª estrofe e o romance mantém um equilíbrio de mestre. Agora a donzela se encontra a vontade ao ponto de fazer uma aposta com o sábio: quem perder ficará nu e entregará todas as roupas e pertences ao vencedor. Ele aceita a proposta lavrada pela mão do rei. As perguntas tornam-se mais variadas e profundas:
“O sábio ali perguntou
Qual a coisa mais aguda?
Disse ela: - É a língua
Duma mulher linguaruda
Que corta todos os nomes
E o corte nunca muda.”
A agudez da jovem responde charadas sobre animais, religião e filosofia:
“Donzela, qual é a coisa
Que pode ser mais ligeira?
Respondeu: - O pensamento
Que voa de tal maneira
Que vai ao cabo do mundo
Num segundo que se queira.”
Nesse ponto o poeta consegue transmitir com perfeição a rapidez das respostas, utilizando as características do discurso direto, por vezes omitindo o verbo introdutório, outras vezes utilizando o direto e indireto na mesma estância. O pensamento de Teodora parece duma dialética irrefutável:
“– Donzela, o que é a vida?
Disse ela: - Um cais de torpeza
E que pode assemelhar-se
A vela que está acesa
Às vezes está tão formosa
E se apaga de surpresa.
Poderíamos aqui descrever todas respostas de Teodora, mas em suma: a sabedoria popular tem na personagem sua mais alta expressão; a sutileza de pensamento, o conhecimento enciclopédico, as metáforas simples e profundas. O sábio prevendo a derrota tenta uma pegadinha:
“Então inventou um meio
Para ver se pegaria
Perguntou: - O Sol de noite
Terá luz quente ou fria?
A donzela respondeu
Que à noite Sol não havia.”
Depois de dissertar sobre a questão, arrebata a quatro estrofes depois:
“O dia Deus fez bem claro
A noite fez bem escura
Se de noite houvesse sol
Estava o homem na altura
De notar esse defeito
E censurar a natura.”
Na 119ª estrofe começa a conclusão. O sábio vencido começa a despir-se; envergonhado não quer tirar a ceroula (cueca). Implora humilhado ao rei; esse diz para pagar a quantia que a jovem quiser; e ela pede a metade do dinheiro que seu senhor quer vendê-la. O rei, por fim, oferece de prêmio a donzela o que ela exigir; ela pede a quantia que seu senhor quer vendê-la mais a liberdade de voltar para casa.
A História da Donzela Teodora nos mostra o imaginário popular do fim do séc. XIX e início do XX sobre a mulher moderna: bem formosa e bem formada. É realista, pois a mulher, como na nossa sociedade, é tratada como objeto de troca, vendida como mercadoria. Teodora supera a escravidão através do seu talento e estudos, nos levando a refletir sobre a igualdade de gênero. No final ao negar a corte do rei, certamente prefere ficar com o senhor que lhe trata como filha, nos faz da mesma maneira refletir sobre a liberdade. Da escravidão vem nobreza, da pobreza vem riqueza e a força motriz dessa transformação é a substância de expressão duma mulher, a beleza, e sobretudo sua substância de conteúdo, a sabedoria.
* Encontra-se um resumo e o texto completo na rede no endereço:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/h/historia_da_donzela_teodora
Bibliografia:
História do Boi Misterioso e Outros Cordéis - Leandro Gomes de Barros - Ed. Hedra - 2004
Guia Prático de Análise Literária - Massaud Moiséis - Ed. Cultrix - 1970
Nova Gramática do Português Contemporâneo - Celso Cunha & Lindlei Cintra - Ed. Nova Fronteira - 1985
* Encontra-se um resumo e o texto completo na rede no endereço:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/h/historia_da_donzela_teodora
Bibliografia:
História do Boi Misterioso e Outros Cordéis - Leandro Gomes de Barros - Ed. Hedra - 2004
Guia Prático de Análise Literária - Massaud Moiséis - Ed. Cultrix - 1970
Nova Gramática do Português Contemporâneo - Celso Cunha & Lindlei Cintra - Ed. Nova Fronteira - 1985
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