As origens do nosso verso popular


II




 “Quando um homem de nosso tempo é extravagante a ponto de desejar familiarizar-se, tanto emocionalmente como intelectualmente, com uma época tão fora de moda como o séc. XII, poderá tentar consegui-lo de diversas maneiras”, escreve Mestre Ezra Pound no seu referido ensaio. As maneiras sugeridas pelo mestre são basicamente três: ler as próprias canções nos livros antigos ou pergaminhos cobertos de iluminuras; tentar ouvir os versos acompanhados de música; e ainda, percorrer em pesquisa as estradas das colinas e dos rios da região de Provença. Como nosso objetivo é outro, iremos aproveitar, no possível, sugestões dos mestres anteriores em relação ao método.

                As trovas não têm fim.

                Da região de Provença foram para Espanha e de lá para a Galícia. Nosso segundo guia é o Roteiro Literário de Portugal e do Brasil, Vol. I, dos mestres Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda, que nos traz uma antologia desde o português arcaico ao contemporâneo. Estamos então no ano de 1189 com a Cantiga D’amor de Pai Soares de Taveirós, considerado por muitos a mais antiga em nossa língua:

CANTIGA D’AMOR


                Como morreu quen nunca bem
                ouve da ren que mais amou
e quen viu quanto reçeou
d’ela e foi morto por en,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!

Como morreu quen foy amar
quen lhe nunca quis ben fazer,
e de que(n) lhe fez Deos ueer
de que foy morto com pesar,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!

Com’ ome que ensandeceu,
senhor, cõ gran pesar que uiu,
e nõ foy ledo, nen dormiu
depois, mha senhor, e  morreu,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!

Como morreu quen amou tal
dona que lhe nunca fez bem
e quen a uiu leuar a quen
a nõ ualia, nen a ual,
Ay, mha senhor, assi moyr’eu!
               
                “Como morreu quem nunca bem/ ouve da pessoa a quem amou”, cantou um dos primeiros poetas na infância de nossa língua. Interessante perceber que os versos não são em redondilha maior, como a maioria dos versos populares de hoje; são oito sílabas sonoras (octassílabos); dispostos em quadras com um estribilho ou refrão como é usual no versejar popular de hoje.  A deixarei assim, em forma arcaica, por não ser objetivo dessa postagem o excessivo número de notas para entendê-la na íntegra. As cantigas de amor galego-portuguesa floresceram no séc. XIII ao XV. Vieram as barcarolas, as baladas, as cantigas de amigo e maldizer... O português nasce cantando trovas, talvez por isso, até hoje somos de certa forma trovadores. Podemos sentir a evolução da língua e de sua melodia lendo outra cantiga, agora de Joam Rodrigues de Castelo Branco (séc. XV?), que possivelmente frequentou a corte de D. João II como pensa o estudioso J. J. Nunes:


CANTIGA SUA PARTINDOSSE


                Senhora, parten tã tristes
                meus olhos por vos, meu bẽ,
                que nῦca tam tristes vistes
                outros nenhῦs por ninguém.

                Tam tristes, tam saudosos,
                tam doentes da partyda,
                tam canssados, tã chorosos,
                da morte mays desejosos
çem myl vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora desperar bem,
que nῦca tam trystes vistes
outros nenhῦs por ninguém.


                Nessa linda cantiga o português ainda é arcaico; a redondilha maior já predomina; e podemos entendê-lo sem muito problema. Percebemos o lirismo português em toda sua graciosidade. Creio que na rede temos versões dessa e da outra cantiga em ortografia contemporânea para o leitor mais curioso.

                Vai o séc. XV e entra o próximo, poderemos falar do Brasil em outra postagem.

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