O Brilho no Olhar
Há
uns tempos participei dum recital na Biblioteca Comunitária do Cabula, situada
na UNEB, Campus Salvador. Seria mais um recital qualquer. Poetas bêbados
declamando concentrados poemas de ontem e dispersos sentimentos de hoje. O
melhor dessas atividades lúdico-literárias não são os poetas e declamadores
profissionais, mas sim os adolescentes e jovens ainda em formação. Pensei em
não recitar, só ouvir o que de novidade poderia encontrar num ou noutro verso,
até que chamaram meu nome... dei a recitar um poema que fiz pr'uma antiga paixão
quando distante:
“Coração
anda comigo
Saudade passa no verso
Que desde a infância abrigo
Coração anda comigo
Assim não corro perigo
Nem me afogo submerso
Coração anda comigo
Saudade passa no verso.
Os
extremos nos separam
São outras ondas aí
Em
outras pedras deparam
É
que extremos nos separam
Morena as trovas não param
Nem vou deixar de sorrir
Os
extremos nos separam
São outras ondas aí.”
Curvo-me ao público, aplausos, e aquilo mesmo. Mas, percebo uma moça nuns
sussurros poéticos. Andava de lá pra cá tentando lembrar um trecho desse poema.
Tinha brilho no olhar. Brilho no olhar que era o brilho no olhar.
Duas
estrelas na face negra linda da moça, as únicas por trás do céu nublado daquela
noite. Digo, não era um brilho comum, recordo o ter visto numa outra jovem que
marcou o meu passado. Brilho de quem vê algo de novo embaixo do sol, que
nos faz acreditar na humanidade, que renova o homem.
“Rosto da noite duas estrelas cintilam”,
anotei nos rascunhos que sempre trago comigo.
Aproximei. Estava a conversar com outro jovem:
- É machista! Você é machista... machista!
O moço retrucava paciente:
- E você ingênua...
Decerto a moça era ingênua, mas ingênua do que o rapaz. Também certo, era mais
inteligente do que ele. Ela dizia, doutra maneira, que fazer poema pra
mulheres, aquelas cantadas em verso, era um pretexto pra conquista, mais uma
safadeza masculina. O poeta que faz versos com essa intenção é machista. Talvez
se tratasse do dilema Nerudiano, "poeta do povo ou das mulheres"?
- É machista!
- Ingênua!
O moço disse que se fosse assim não existiria poesia lírica. A jovem que um
poema verdadeiro para uma mulher não deixa de ser político. Que prefere um
poeta político, que consegue colocar em palavras sentimentos nobres, intenções
nobres...
Acompanhei mais de perto a discussão. Girou e girou e ficou nisso mesmo.
Machista! Ingênua! Ingênua! Machista!
Fizeram uma roda e pediram pr'eu recitar. Era uma dezena de moços e moças
leitores de poemas, muitos arriscavam pela primeira vez a luta com e contra as
palavras. Nós que aprendemos com os velhos, devemos dar toda atenção aos mais
novos. Com eles sabemos até onde essa sociedade afeta a sensibilidade.
Posei pra foto. Ela e mais duas pediram um "selfie"(acho que é assim que escreve) comigo. Não bebi o
ponche e antes de despedir de todos disse à moça pra não perder o brilho no
olhar. Ela percebendo que eu estava de partida, me fez elogios, dos quais
sempre coro, disse ter 19 anos e fazer administração. Presenteei-a com um
livreto meu. Com elegante discrição o guardou.
Por fim, o moço renitente voltou pra mim e disse sobre o brilho no olhar:
- É
só ingenuidade poeta... ingenuidade.
Ela riu, disse-me obrigado e ficou a olhar-me com admirada estima.
Fui
para o ponto, peguei meu ônibus. Suspirei para o céu sem estrelas daquela noite
de beleza ingênua.
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