Amor, louco amor
− Arismem como é o golpe guga?
− É assim, tem o taco, tem a
bola... rem... preto na verde, verde na azul, azul no amarelo... na marrom na lilás, rush ... segura
o taco e... ram!
Lá ia mais um menino chorando
com um cascudo de Arismem. Eu mesmo fui vítima do golpe guga. Os meninos mais
velhos pegavam os mais novos. Vai lá e pergunte como é o golpe guga. Assim seguia a tradição.
Arismem era o louco mais famoso
da cidade. Outros também com graça, mas ele de longe o mais inteligente.
− E aí Airis? – Um jovem o
cumprimenta se fazendo de íntimo para impressionar amigos. Vai a tirada:
− Airis? Ih... já vi que você
não saca nada de geografia. Airis? Aires é a capital da Argentina... o meu nome
é Arismem!− E seguia a passo de malandro fazendo biquinho.
Respeitável figura da minha
infância.
Vivia só. Só que um dia chegou
uma mendiga louca por nome Margarida. Não era de lá, ninguém sabe ao certo de
onde veio. Chegou e conquistou o coração do sábio Arismem. Margarida de tez
branca, não afeita a banhos, cabelo castanho claro, andar deselegante e fala
vulgar. Gostava de nos assustar levantando o vestido, mostrava seu lindo corpo
a arreganhar as partes íntimas. Arismem outra coisa, tez escura e andar gingado.
Um poliglota. Falava espanhol, inglês e francês; com o português perfeito que
na loucura misturava às outras três línguas e ficávamos sem entender nada.
Diria que em cada tampa na sua panela os opostos se atraem...
rem!
Víamos de mãos dadas a passear
nas ruas do centro. Quando com ele, Margarida se comportava educada, apaixonada
pelo apaixonante Arismem. Namoravam na Praça da Matriz, rolavam na grama,
beijavam-se calorosamente. Faziam sexo à vista de todos. Ninguém ousava impedir
o ato dos dois. Em maluco não se mexe. Que amor, que doçura. Fiquei feliz com o
amor dos dois, motivo de riso pra hipocrisia da cidade. Dividiam a comida; não
pediam dinheiro, se alguém desce era bem capaz de rascá-lo. Quando na
adolescência assistir Hair lembrei
dos dois.
Um amor da era de aquários.
Margarida, ah margarida, me fez
uma. Tinha catorze anos e fiquei enamorado duma mocinha da escola. Sempre fui
discreto e contido. Acompanhava-a até sua casa, conversávamos horas e chegou um
dia que confessei. Disse-me que daria a resposta. Deu com um sorriso largo
convidando pra irmos à praça. Chegamos.
Quando vou beijá-la... vem a louca:
− ‘Cê quer é b... – O resto não
precisa contar. A menina deu um grito e saiu correndo em pânico.
Arismem e Margarida caso de
loucura de amor. Por vezes, como todo casal, discutiam. Margarida com seu
dicionário de palavrões. Arismem com suas línguas pantomímicas. Uma graça.
Durou anos o amor dos dois.
Mas de novo ele estava só. Não se via mais o lindo casal com os carinhos
insanos, com seus beijos loucos. Era Arismem, seu cigarro, sentado na praça,
andando na noite a resmungar.
Até que a morte nos separe.
Não lembro, creio que pai deu a
notícia. Margarida tinha morrido atropelada na BR. Fiquei sentido pela perda.
Com o tempo nosso louco estava recuperado. Eu cresci, parti
e retornei. Ganhei duma amiga um charuto Antonio
y Cleopatra. Sentei no banco da praça, vem ele. Pede-me um cigarro, vou e
dou o charuto. Tempo depois aparece fumando um cigarro...
− Cadê o charuto de fumo cubano
que lhe dei?
− Eu troquei por um cigarro.
− Mas o charuto vale um pacote
desse cigarro.
− Eu te pedi um cigarro, não um
charuto.
Mestre de loucuras. Profundo
entendedor de Diógenes a Aristóteles. Soube que faleceu faz uns anos de
repente, dormindo, estava medicado e até havia arranjado um serviço.
Saudoso. É merecedor mais do que
essas simples linhas.
Arismem mora na memória.
Na loucura amou, viveu, ensinou e morreu.
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